O despertador tocou às 6 horas. 5 horas portuguesas. Os músculos, renitentes ao movimento, retomaram gradualmente a flexibilidade dos dias anteriores. Pequeno almoço providenciado pelo albergue e tomado na companhia de duas jovens espanholas, companheiras de camarata, martirizadas pelo excesso de fricção nos apêndices podais...
Saída ainda de noite, já com o horizonte a acender-se. Durante o percurso foi possível voltar a cruzar ou relembrar personagens peculiares em circulação pelo Caminho: a mãe e filha, a primeira de provecta idade, provenientes de Braga, utilizava a enorme mochila como estendal de roupa lavada e sem tempo para secar no hostel; o jovem português a viver no Luxemburgo, de passo largo e determinado, que desde há várias semanas calcorreava o Caminho de Santiago desde Lisboa; a alemã robusta, de passo certo, que rapidamente ultrapassava todos e desaparecia numa curva do Caminho; o grupo de portugueses barulhentos que frequentemente utilizavam o nome das árvores preponderantes na zona, o carvalho, para se incentivaram ou quiçá insultarem; o peregrino solitário que trocou a habitual mochila por um atrelado com rodas por ele arrastado; a militar da GNR que, ao seu ritmo e sem qualquer preocupação de planeamento, desfrutava o Caminho desde o Porto. Uma amálgama de vontades, gostos e feitios. Formas diferentes de usufruir os prazeres disponibilizados.
Chegada a Santiago cerca de 4 horas depois da partida, com o sol já alto. A cidade transbordava. estamos em ano Xacobeu, que faz os peregrinos lembrarem-se da necessidade de o serem. Segundo o turismo de Espanha, o Xacobeo, também conhecido como Ano Jacobeu, Ano Santo ou Ano Jubilar, só é celebrado quando a festividade do Apóstolo Santiago, no dia 25 de julho, coincide com um domingo. Esta coincidência ocorre num intervalo de anos diferentes, a cada 5 ou 6 anos, e, às vezes, é preciso esperar até 11 anos para comemorar este ano tão importante para os católicos.
Não sendo peregrino, prescindi da Compostela, de beijar o santo na catedral e de assistir à missinha. Fica a fotografia na praça da Catedral e a caderneta religiosamente (😏) carimbada ao longo do caminho, em locais santos, ímpios e outros mais ou menos.
8 dias de caminhada. Ponte de Lima a Santiago, cerca de 160 km (acresce aqueles efetuados em visitas turísticas e históricas), 6 albergues, muito convívio, músculos impregnados de ácido lático, mas epiderme sem qualquer balão de liquido, encontros agradáveis e o deleite de visitar, com tempo e a pé, cidades históricas e paisagens maravilhosas, algumas já anteriormente visitadas como turistas automobilizados e apressados.
O que leva um gajo que até é ateu fazer este percurso, perguntaram vários amigos? Talvez o mesmo que o levaria a efetuar uma grande rota (GR) num outro local qualquer com estas características. Talvez o mesmo que leva um não crente a apreciar e a encantar-se com as particularidades de uma igreja ou os recantos de uma mesquita. No que respeita à comparação com os outros percursos pedestres de turismo da natureza ou cultural, convenhamos que o Caminho de Santiago tem algumas vantagens: mesmo que se parta sozinho nunca se caminha desacompanhado e, principalmente, o enorme apoio logístico sustentado pelos serviços de alojamento e de restauração estrategicamente localizados e que nunca deixam o caminhante com fome ou a dormir o relento..
Está feito!!!
BUEN CAMINO, literalmente ou em sentido figurado.