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segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

A Flauta de Deus

Cabisbaixo, doente, nervoso mas atento, o espetador da primeira fila, Wolfgang, trauteava a melodia caótica libertada pelos músicos presentes no fosso da orquestra. O  recentemente inaugurado  teatro de Praga, Stavovské divadlo, estreava  a jovem peça  de Amadeus que viu a luz do dia em Viena em 1791.O teatro estava cheio. 


O grande candelabro exalava um cheiro intenso a estearina das centenas de velas que tremeluziam os 3 níveis de balcões e os seus ocupantes. Na inexistência deste odor e do aroma de saquinhos com ervas cheirosas transportados debaixo das roupas dos aristocratas, o cheiro na sala de espetaculos seria insuportável. A distribuição do público pelo teatro relacionava-se com a classe social, inversamente proporcional ao piso ocupado. O fru-fru da seda dos vestidos das senhoras a roçar as poltronas e o burburinho indiciador de trocas de ideias malaciosas entre os audientes, esbateram-se com o início  do primeiro ato.  Num enredo sinuoso, Tamino, o príncipe, contracenava com Pamina, a filha da rainha da rainha da noite, entre as pantominices do caçador  de pássaros, Papaguino. A ária da rainha da noite, imponente mas simultaneamente alegre e solta, fez com que, no final, o público exaltasse da sua  satisfação e  prazer. Mozart na primeira fila, atento ao desempenho dos atores, tomava notas freneticamente que iram servir certamente para tornar ainda melhorar a ópera Flauta Mágica. Morreu naquele mesmo ano da graça de Deus de 1791.


- "Excuse me". Acordei dos pensamentos.
Um casal de americanos tentava passar para uma cadeira da mesma linha da 1° galeria.
Estávamos no mesmo teatro 230 anos depois da imaginária cena a ima relatada (imaginária porque estávamos no seculo XXI e porque a estreia da Flauta Mágica em Praga não contou com a presença  do compositor devido á  sua morte prematura). Um dos mais antigos teatros da europa e com espetáculos ininterruptos desde a sua construção . No entanto a ópera era a mesma. O penúltimo drama musicado pelo conhecido génio.
Sentados na primeira galeria, um lugar lateral do quarto andar, comprado online 15 dias antes de entre 3 ou 4 disponíveis, a atenção distribuía-se por três  palcos: o palco propriamente dito e a razão principal daquela sala de espetáculos, o fosso da orquestra e o espaço por onde se distribuía a assistência, desde a plateia até à segunda galeria, um vertiginoso quinto andar.
O palco, pouco largo,  prolongava-se por uma profundidade maior que o comprimento da plateia o que permitia a criação de cenas sobrepostas e com grande perspetiva. Sobre o palco, um recurso multimedia ausente no tempo de Mozart, em que o alemão imperava, permitia legendar para checo e inglês a fria, autoritária e incompreensível língua germânica.
No exíguo espaço confinado pelo pelo palco e pelas muralhas laterais, a orquestra, dominada pelos instrumentos de corda e sopro, marcava o compasso aos atores e figurantes.
A plateia e restantes setores por onde se distribuíam as centenas de melómanos  despertavam, pelas peculiaridade e diversidade, uma atenção muito especial: o casal no camarote de fronte, ela sentada, ele em pé durante as quase 3 horas de espetáculo, alternando o olhar entre o palco e o espelho presente na parede do seu cubículo; a criança que, com pouco mais de 10 anos, assistia comovida e embevecida, sozinha, ao deambular ritmado e melódico do barítono e da soprano; e o casal de americanos das cadeiras contíguas que, sonolentos, lânguidos  e desatentos ,  desertaram  no final do primeiro ato sem assistirem à alegre e musical união de facto entre Papaguino e Papaguina.

 Como refere o texto de apresentação da obra, os autores da ópera Flauta Mágica , música genial de Wolfgang Amadeus Mozart e libreto do seu amigo Schikaneder, vieram da tradição da antiga ópera mágica vienense, na qual, ao lado de personagens do mundo humano, atuavam várias criaturas e animais de contos de fadas, bem articulados com os  efeitos da maquinaria cénica.
No final, este cenário  feérico estendeu-se para o exterior do teatro com um manto de neve que cobriu de paz as ruas e árvores da cidade de Praga.

A Flauta Mágica, flauta de Deus.

Praga, dezembro de 2022